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O
HOMEM QUE FOI POSTO NUMA JAULA
A estória começa com
um rei que, enquanto estava absorto em divagações a uma das janelas do seu
palácio, certa tarde, notou por acaso um homem na praça embaixo. Era, ao que
parecia, um homem comum, voltando para casa ao entardecer, e que fazia esse
mesmo percurso cinco noites por semana há muitos anos. O rei acompanhou esse
homem em sua imaginação: viu-o chegando a casa, beijando maquinalmente a
mulher, comendo o seu jantar, perguntando se estava tudo bem com as crianças,
lendo o jornal, indo para cama, tendo, talvez, relações sexuais com a sua
esposa ou talvez não, dormindo e saltando da cama na manhã seguinte para ir
trabalhar.
E uma curiosidade súbita
se apoderou do rei, a qual, por um momento, baniu sua fadiga: "Gostaria
de saber o que aconteceria a um homem se fosse posto numa jaula, como os
animais no zoológico." A sua curiosidade talvez não fosse muito
diferente, em alguns aspectos, da dos primeiros cirurgiões que se perguntavam
como seria a realizar uma lobotomia no cérebro humano.
Assim, no dia seguinte,
o rei chamou um psicólogo, falou-lhe da sua idéia e convidou-o a observar o
experimento. Quando o psicólogo objetou, dizendo: "É uma coisa impensável
manter um homem numa jaula", o monarca replicou que muitos governantes,
com efeito, se não literalmente feito isso, desde o tempo dos romanos,
passando por Genghis Khan, até Hitler e outros líderes totalitários do
nosso tempo; então por que não averiguar cientificamente o que aconteceria?
Além disso, acrescentou o rei, estava decidido a fazer a experiência quer o
psicólogo participasse ou não dela; ele já convencera a Fundação para as
Grandes Pesquisas Sociais a desembolsar uma grande verba para esse experimento
e por que deixar que esse dinheiro fosse desperdiçado?
Nesta altura dos
acontecimentos, o psicólogo também já estava sentindo uma grande
curiosidade íntima sobre o que aconteceria se um homem fosse enjaulado.
E assim foi que, no dia
seguinte, o rei ordenou que fosse trazida uma jaula do zoológico - uma grande
jaula que tinha sido ocupada por um leão, quando era novo, e depois por um
tigre: recentemente, servira de lar a uma hiena que tinha morrido na semana
anterior. A jaula foi colocada num pátio interno, nos terrenos do palácio, e o homem comum que o rei tinha visto da
janela foi trazido e colocado lá dentro. O psicólogo, com os seus testes de Rorschach e Wechsler-Bellevue, na pasta para administrá-los num momento
apropriado, instalou-se do lado de fora da jaula.
No começo,
o homem estava simplesmente desorientado e repetia constantemente ao psicólogo:
"Eu tenho de pegar o bonde, tenho de ir trabalhar, olhe que horas são, já
estou atrasado para o trabalho!" Mas, depois, durante a tarde, o homem
começou a dar-se seriamente conta do que estava acontecendo e então
protestou com veemência: "O rei não pode fazer isto comigo! É uma
injustiça! É contra a lei!" A sua voz era estentórica e tinha os olhos
cheios de cólera. O psicólogo gostou do homem pela sua cólera e
apercebeu-se, vagamente, de que já tinha notado esse estado de ânimo, com
freqüência, nas pessoas que o consultavam em sua clínica. "Sim",
compreendeu ele, "essa cólera é a atitude das pessoas que - como os
adolescentes saudáveis de qualquer época - querem combater o que está
errado e que protestam diretamente contra isso. Quando as pessoas vão à clínica
nesse estado de ânimo é boa... elas podem ser ajudadas".
Durante o resto da
semana, o homem enjaulado continuou em seus veementes protestos. Quando o rei
passava perto da jaula, como fazia diariamente, o homem dirigia seus protestos
diretamente ao monarca. Mas o rei respondia: "Escute aqui, bom homem, você tem comida em abundância,
tem uma boa cama e não precisa trabalhar. Tomamos boa conta de você. Então
por que é que está reclamando?".
Passados mais alguns
dias, os protestos do homem diminuíram e acabaram por cessar. Ele mantinha-se
silencioso em sua jaula, recusando-se geralmente a falar. Mas o psicólogo
podia ver o ódio brilhando em seus olhos. Quando proferia algumas palavras,
eram frases curtas e claras, proferidas na voz forte e vibrante, mas calma, da
pessoa que odeia e sabe a quem odeia.
Sempre que o rei
entrava no pátio, havia um fogo profundo nos olhos do homem. O psicólogo
pensou: "Deve ser esta a maneira como as pessoas atuam quando são
conquistadas pela primeira vez". Lembrou-se de que também tinha visto
aquela expressão nos olhos e ouvido aquele tom de voz em muitos pacientes em
sua clínica: o adolescente que fora injustamente acusado em casa ou na escola
e nada podia fazer para justificar-se; o estudante universitário de quem a
opinião pública e do campus exigia que fosse um astro no campo de futebol,
mas era intimado pelos seus professores a obter aprovação nos cursos para os
quais não podia se preparar adequadamente, mesmo que tivesse êxito no
futebol... e que acabava sendo expulso da faculdade por ter colado nos exames.
E o psicólogo, observando o ódio ativo nos olhos do homem, pensou:
"Isso ainda é bom; uma pessoa que trava esta luta no seu íntimo ainda
pode ser ajudada".
Todos os dias, o rei,
quando passeava pelo pátio, não se esquecia de recordar ao homem enjaulado
que recebia bom alimento, estava confortavelmente instalado e assistido, então
por que não gostava desta vida? E o psicólogo notou que, enquanto o homem se
mostrara no princípio inteiramente impenetrável às observações do rei,
parecia agora que, cada vez mais, fazia uma pausa para reflexão após a fala
do monarca - por uma questão de segundos, o reaparecimento de seu ódio era
protelado - como se ele perguntasse a si próprio se aquilo que o rei dissera
teria alguma possibilidade de ser verdade.
E, passadas mais
algumas semanas, o homem começou discutindo com o psicólogo como era uma
coisa útil poder contar com alimento e teto certos; e como o homem tinha de
viver de acordo com a sua sorte, de qualquer jeito, e uma boa parte de sua
sabedoria estava, justamente, em aceitar a sorte reservada a cada um. Não
tardou a desenvolver uma extensa teoria sobre a segurança e aceitação do
destino, o que soou aos ouvidos do psicólogo de um modo muito semelhante às
teorias que Rosenberg e outros haviam elaborado para os fascistas na Alemanha.
Durante esse período, o homem mostrou-se muito volúvel, falando
profundamente, embora a sua fala quase sempre fosse um monólogo. O psicólogo
notou que a voz do homem era monótona e inexpressiva, como a voz das pessoas
na televisão que fazem um esforço para olhar o telespectador nos olhos e tentam parecer sinceras, quando lhe dizem que deve
ver o programa que elas anunciam, ou os locutores de rádio que são pagos
para persuadir o ouvinte de que deve gostar de música clássica.
E o psicólogo
também observou que os cantos da boca do homem estavam agora caídos, como se
ele estivesse muito amuado. Então, de súbito, o psicólogo recordou-se: era
assim que as pessoas de meia-idade, da classe média, se apresentavam em sua
clínica, os respeitáveis burgueses que iam a igreja e viviam moralmente, mas
estavam cheios de ressentimentos, como se tudo o que eles faziam fosse
concebido, nascido e criado em ressentimento. Isso fez lembrar ao psicólogo o
dito de Nietzsche de que a classe média se consume no ressentimento. Foi então
que, pela primeira vez, o psicólogo começou a ficar seriamente preocupado
com o homem na jaula, pois sabia que, quando o ressentimento ganha raízes
firmes e começa a ser bem racionalizado e estruturado pode se tornar algo
semelhante à câncer. Quando a pessoa deixa de saber quem odeia, fica muito
mais difícil de ajudá-la.
Durante esse período,
a Fundação para as Grandes Pesquisas Sociais teve uma assembléia da junta
de administradores e foi decidido que, como estavam gastando uma verba para
sustentar um homem numa jaula, era preferível que representantes da fundação
fossem, pelo menos, dar uma vista de olhos do experimento em curso. Assim, um
grupo de pessoas, formado por dois professores e alguns estudantes finalistas,
apresentou-se um dia para ver o homem enjaulado. Um dos professores passou então
a dar uma aula ao grupo sobre a relação do sistema nervoso autônomo e das
secreções das glândulas internas com a existência humana numa jaula. Mas
ocorreu ao outro professor que as comunicações verbais da própria vítima
também poderiam ser interessantes, de modo que perguntou ao homem como é que se sentia por viver
enjaulado. O homem mostrou-se cordial com os professores e estudantes, e
explicou-lhes que escolhera esse modo de vida por que havia grandes valores na
segurança e em ter quem cuidasse dele; que eles certamente compreenderiam
como a sua escolha tinha sido razoável e sensata - e assim por diante.
"Que estranho e
que patético" - pensou o psicólogo. "Por que é que ele se bate tão
arduamente para fazer com que os outros aprovem seu modo de vida?"
Nos dias seguintes,
quando o rei passava pelo pátio, o homem fazia-lhe
referências aduladoras, detrás das grades da jaula, e agradecia-lhe a comida
e o alojamento. Mas quando o rei não estava no pátio, o homem ignorava que o
psicólogo estava presente e o observava, a sua expressão era muito
diferente, taciturna e mal-humorada. Quando o alimento lhe era passado pelo
tratador, através das grades, o homem deixava freqüentemente cair os pratos
ou entornava a água, e depois se sentia embaraçado e confuso, por causa de sua
estupidez e inépcia. A sua conversação tornou-se cada vez mais monótona;
e, em vez de se envolver em teorias filosóficas sobre o valor de ter quem
cuidasse bem dele, passou a expressar-se em frases simples como "É o
destino", que ele repetia incessantemente ou então murmurava entre
dentes: "É isso". O psicólogo estava surpreendido por ver que o homem era
agora tão inepto que deixava cair comida, ou então tão estúpido que se
expressava nesta frases estéreis, pois sabia, graças aos seus testes, que o
homem tinha sido originalmente de inteligência média. Então, fez-se luz no
psicólogo: esse era o gênero de comportamento que ele tinha observado em
alguns estudos antropológicos entre os negros do sul - homens que tinham sido
forçados a beijar as mãos que os alimentava e escravizava, que já não eram
capazes de odiar ou de se rebelar. O homem na jaula passou, cada vez mais, a
sentar-se, simplesmente, durante o dia todo, na mancha de sol que lhe chegava
através das grades, e o seu único movimento era mudar de lugar, de tempos em
tempos, de manhã até o por-do-sol.
Era difícil dizer,
exatamente, quando teve início a última fase. Mas o psicólogo apercebeu-se
de que o rosto do homem parecia não ter agora qualquer expressão particular;
o seu sorriso já não era adulador, mas simplesmente, vazio e sem significado
algum, como o esgar de um bebe quando tem gás no estômago. O homem fazia as
suas refeições e trocava algumas palavras com o psicólogo, de tempos em
tempos; mas o seu olhar era distante e vago e, embora encarasse o psicólogo,
parecia que, realmente, nunca o via.
E agora o homem, em
suas conversas desconexas, deixou de usar a palavra "eu". Tinha
aceitado a jaula. Não tinha cólera, nem ódio, nem racionalizações.
Mas agora estava louco!
c
C
A noite em que o psicólogo
se apercebeu disso, sentou-se em seu apartamento para escrever o relatório
final, com suas conclusões do experimento. Mas era-lhe muito difícil
encontrar as palavras, pois sentia em si mesmo um grande vazio. Fazia um esforço
para se tranqüilizar com as palavras, "Eles dizem que jamais se perde
coisa alguma, que a matéria é simplesmente transformada em energia e volta outra vez." Mas ele não podia deixar de
sentir que alguma coisa se perdera, que alguma coisa abandonara de vez o
universo, nesse experimento.
Finalmente, o psicólogo
foi para a cama sem ter concluído o relatório. Mas não era capaz de dormir;
havia como que uma coisa que o roia intimamente e que, em eras menos racionais
e científicas, teria sido chamada de consciência. Por que não disse ao rei
ser esse o experimento que nenhum homem pode fazer ou, pelo menos, por que não gritei que nada teria a ver
com todo esse estúpido negócio? É claro, o rei ter-me-ia despedido, as fundações
nunca mais me dariam dinheiro para pesquisas e, na clínica, todo mundo diria
que eu não era, realmente, um cientista, no duro. Mas talvez uma pessoa possa
ganhar a vida lavrando a terra nas montanhas, ou pintar ou escrever algo que
faça mais felizes e mais livres os homens futuros...
Mas o psicólogo
compreendeu que mais divagações era, pelo menos de momento, irrealista e
tentou voltar à realidade. Entretanto,. Tudo o que ele
conseguira era essa sensação de vazio no seu íntimo e o martelar das
palavras "algo foi arrebatado do universo e no seu lugar ficou apenas um
vazio."
Finalmente, adormeceu.
Algum tempo depois, no meio da madrugada, foi despertado por um sonho
surpreendente. Uma multidão se aglomerava, no sonho, diante da jaula, no pátio,
e o homem enjaulado - que já não se mostrava inerte e vazio - estava gritando através das grades, numa veemente oratória:
"Não foi só de
mim que arrebataram a liberdade!" - gritava ele. "Quando o
rei põe, ou a mim ou a qualquer outro homem, numa jaula, a liberdade de cada
um de vocês também é arrebatada. O rei deve morrer!" A multidão começou
entoando "O rei deve morrer!", apoderou-se da jaula e arrebentou-lhe
as grades, que passaram a ser brandidas como armas quando toda aquela gente investiu contra o palácio.
O psicólogo acordou. O
sonho enchera-o de uma sensação imensa de esperança e júbilo - uma experiência
de esperança e júbilo que, provavelmente, não seria muito diferente da
experimentada pelos homens livres da Inglaterra quando obrigaram o rei John a
assinar a Magna Carta. Mas não fora em vão que o psicólogo fizera uma análise
ortodoxa durante seu treinamento psicanalítico e, enquanto jazia deitado na cama, cercado por essa aura de felicidade, uma
voz falou no seu íntimo: "Ah, você teve esse sonho para sentir-se
melhor; é apenas a racionalização de um desejo".
"O diabo que é!"
- disse o psicólogo saltando da cama. "Talvez alguns sonhos sejam para a
gente agir de acordo com eles!"
(Rollo May, Psicologia e Dilema
Humano, Zahar, 1974, Rio.)
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