Um dia, do sobrado de sua casa, viu longe um vulto que se aproximava a passos moderados. Lentamente foi reconhecendo um grande amigo de infância. Retornando como retornam todos os que partiam. Abraçou-o e perguntou-lhe por onde andara por todos esses anos.

          Ouvia com interesse a intensa vida que seu amigo lhe narrava. Viajara até o outro lado do mundo e trouxera apenas histórias, algumas ficaram mundialmente famosas, como a lição que um guerreiro samurai tivera ao desafiar um mestre Zen.

          O Estatuto local não permitia manter-se a cabeça coberta quando grandes homens falavam ou eram citados. O fazendeiro inconsciente tinha o chapéu à mão, sobre suas coxas.

          O amigo não havia feito fortuna. Ao contrário, seus trajes mostravam que quase chegava a passar necessidade. Apesar disto, podia-se notar em sua face uma das mais raras máscaras do homem, a da dignidade. A vida acaba sempre por dar ao homem o rosto que ele merece.

          Que preço teriam suas atitudes? Em que conta se podia calcular a riqueza que não conseguira amealhar, e como avaliar o sofrimento ocasionado pelas decisões corajosas que o amigo tomara?

          Convidou o amigo para acompanhá-lo em algumas visitas que teria de fazer. Assim poderiam continuar a conversa.

          Ele lamentou não poder ir. Suas roupas encardidas não eram apropriadas. O fazendeiro insistiu para que se banhasse e ofereceu-lhe, emprestada, uma roupa que ganhara do rei Dom Pedro. Havia guardado para uma ocasião especial, e aquela lhe parecia bem apropriada.

          Quando partiam, riu da admiração de seus empregados ante o efeito da sua indumentária sobre o amigo. As moças olhavam-no segurando o pilão e socando-o com mais vigor e prazer. O fubá do vaso entre suas coxas exalava o seu cheiro característico no ar quente do sertão, o cheiro do milho.

          No caminho, todos agiam da mesma forma à realeza do amigo. A roupa realmente caíra-lhe bem, displicentemente, sem esforço, quase ao acaso, seus passos tornaram-se altivos. As pessoas cumprimentavam-no olhando para o amigo. Uma sensação de invisibilidade começou a se apossar dele, de tal forma que, ao chegarem à casa aonde se dirigiam, pensava continuamente nas reações que as vestes causavam.

          Apresentando o amigo, disse:

          — Este homem é meu amigo. É um homem honrado, conheço-o desde a infância. Quanto às roupas, são minhas!

          A apresentação causou embaraço a todos.

          Ao saírem, o amigo, magoado, perguntou como pudera dizer aquilo. Ele desculpou-se e disse que não sabia como tinha dito aquilo. Saíra sem ele sentir, foi sua língua solta que disse tal asneira.

          [Desconhecia ele que a língua nunca mente nem comete erros.]

          Dirigiam-se à segunda casa. O fazendeiro quase já nem se dava conta das desventuras de seu amigo. Ele decidira firmemente não pensar nas roupas e muito menos mencioná-las novamente.

          Com cautela, apresentou o amigo:

          — Este homem é meu amigo...!

          Ninguém lhe dava ouvidos, seu amigo era o centro de todas as atenções.

          Este casaco é meu, o turbante também. Não são as roupas que fazem as pessoas. Isto é algo trivial, roupas não alteram o significado da pessoa em si. Eu continuo o mesmo. Ele foi quem se transformou.

          [Não podia perceber o momento exato em que uma racionalização se instala na mente.]

          As roupas oscilavam em sua mente como um pêndulo. Subitamente falou:

          — Eis meu amigo de longas datas, um cavalheiro vivido. Quanto às roupas, são dele e não minhas!

          As pessoas ficaram surpresas. Nunca tinham ouvido uma apresentação daquela natureza.

          ‘As roupas são dele e não minhas...?’

          Ao saírem, o amigo indignado disse que não iria a mais nenhum lugar com ele. O fazendeiro segurou-o pelo braço e rogou:

          — Por favor, não faça isto. Ficarei infeliz pelo resto da vida ao lembrar-me deste episódio. Prometo. Juro não mencionar estas malditas roupas novamente.

          Estava confuso. Roupas nunca tinham tido nenhuma importância para ele antes.

          — Oh! Deus! O que está ocorrendo comigo?

          O pobre homem não sabia que, usando aquela técnica, nem Deus conseguiria livrar-se da importância das roupas.

          Entretanto deve-se desconfiar daqueles que juram; há algo mais profundo envolvido quando alguém necessita jurar por alguma coisa.

          Caminhavam à última casa. O silêncio consumia a maior parte do tempo. O fazendeiro aproveitara-o para gravar a fundo na sua mente a não menção das roupas.

          [Ignorava que pessoas controladas são perigosas. Criam um grande açude dentro de si. Aparentemente são rígidas, contidas, reservadas. Dentro de si sua ânsia de abandonarem-se está completamente amarrada, pronta para explodir.]

          Ao chegarem à última casa, o fazendeiro transpirava por todos os poros. O amigo também estava preocupado. O fazendeiro estava oprimido; sentia náuseas. Devagar, cuidadosamente, pronunciou cada palavra da apresentação:

          — Apresento-lhes meu amigo! É um velho amigo. Um homem muito bom!

          Sua voz vacilou. Um enorme impulso veio de dentro. Ele sentia-se sendo arrastado, não pôde resistir. Então, de súbito, falou alto:

          — Quanto às roupas, perdoem-me, não direi nada sobre elas, jurei que não diria nada sobre elas!  

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